Caminho inverso
O caminho inverso foi o que fez Valéria Pessôa, Executiva de TI do ECAD, instituição responsável pela arrecadação e distribuição de direitos autorais de execução pública de músicas. Falando assim, parece um processo simples, a música tocou em alguma plataforma, seja qual for, deve haver arrecadação de direitos autorais. Sim, mas como monitorar e gerenciar este universo amplo e diverso da música para que todos os integrantes desta cadeia (compositor, intérprete, produtor e músicos) recebam o que lhes é de direito sobre cada uma das mais de 740 mil execuções musicais em cerca de mil emissoras de rádio e 300 canais de TV (números de 2024) em todo o País, envolvendo artistas nacionais e estrangeiros? Viabilizar tudo isso é tarefa da TI do ECAD, sob a batuta de Valéria.
E por que caminho inverso? Porque Valéria é engenheira de produção e entrou para a TI justamente a partir do negócio, reforçando a máxima da necessidade da aproximação total entre as áreas. “Acho que isso foi um grande facilitador na minha vida porque eu não tinha aquela linguagem técnica que era difícil do negócio entender. E a linguagem do negócio é mais natural do que a técnica, que eu fui aprendendo”, diz. Hoje, ela comanda uma verdadeira transformação digital iniciada em 2021, quando identificou duas questões fundamentais a serem priorizadas: cibersegurança e infraestrutura do banco de dados.
No item segurança, a partir de um diagnóstico foram identificados os maiores riscos e traçado um roadmap com a troca de sistemas e a implantação de ferramentas e novo firewall. “Hoje, o grau de maturidade em cibersegurança é alto”, afirma. No segundo tópico, o de banco de dados, a avaliação mostrou que o processo estava desatualizado, servidores obsoletos acarretando que o sistema de controle da distribuição dos direitos autorais levasse quatro dias para ser rodado, o que hoje é feito de um dia para outro. E como este é o core do Ecad, Valéria criou uma gerência dedicada à Identificação Automática da Música, responsável pela identificação de mais de 6 trilhões de execuções em streaming, só no ano de 2024, apoiado por um banco de dados que hoje contempla nada menos do que quase 25 milhões de obras musicais. “Sem esta área dedicada eu não tinha como evoluir.”
O processo do Ecad envolve arrecadação, identificação e distribuição em todos os segmentos onde acontece execução musical: rádio, tv, streaming, internet, shows, bares, peças de teatro, academias…, num volume “monumental”, como descrito por Valéria. O uso de inteligência artificial acontece ao longo de todo o processo por meio de algoritmos de deep learning, técnicas de machine learning, redes neurais e buscas baseadas em bases de dados vetoriais.
“Aprendemos e treinamos estes modelos com mais de dois milhões de músicas registradas. É um treinamento constante que alimenta todo o processo, permitindo que uma hora de música em rádio seja segmentada e identificada em cerca de dois a três minutos a partir do DNA que cada música possui, garantindo total assertividade”, explica. E para a leitura dos relatórios entregues pelas emissoras no formato de texto são utilizadas técnicas de OCR, reconhecimento óptico de caracteres e reconhecimento de imagem. Hoje, o processo já contempla também o uso de IA generativa na transformação de caracteres de línguas de outros países para o alfabeto romano e Valéria explica que tudo isso permite aumentar a biblioteca de músicas fazendo com que mais pessoas desta cadeia produtiva sejam beneficiadas. “E vemos ainda muita oportunidade de ganho nesta seara com IA”, afirma.
Segundo Valéria, como o ECAD é a única instituição no País que trabalha na arrecadação e distribuição do direito autoral na área de música, não existe um ERP focado na área e nem sistemas dedicados, o que leva a que todas as soluções sejam desenvolvidas internamente junto com parceiros que têm que passar a entender profundamente do negócio. Na área de Arrecadação, o procedimento foi atualizado com o Sales Force e no momento Valéria está à frente de um projeto grande de modernização de um sistema legado feito em Delphi, que tem mais de 20 anos, para a construção de uma nova solução focada na distribuição dos valores que cabem a cada participante.
Do chão de fábrica
Valéria entrou na TI para implementação de ERP como uma pessoa do negócio com conhecimento de chão de fábrica e a partir daí começou a expandir sua atuação para outras áreas. Na Essilor, multinacional francesa fabricante de lentes oftalmológicas criada em 1849 e que tem entre seus produtos as lentes Varilux, foi chamada para resolver a questão do Bug do Milênio e lá chegou à cadeira de gestora de TI.
Entre suas iniciativas na empresa, já como gestora, ela destaca o que chamou de um enorme Big Bang, quando trocou 70% dos sistemas e foi além, abrangendo as áreas de relacionamento com cliente, BI e de entrada de pedido nos laboratórios, onde são produzidas as lentes de óculos, modernizando todas as soluções da empresa num projeto de 5 bilhões de euros de investimento que viabilizou também o e-commerce, trazendo maior agilidade e rastreabilidade.
“Neste momento, percebi que poderia fazer mais coisas e comecei a trabalhar em projetos que envolviam tecnologia e produção, quando fui convidada a assumir a diretoria de Operações, que abrangia TI, supply chain, suprimentos, controle de qualidade e a própria engenharia.” Valéria lembra que na produção de lentes digitais, algo novo na ocasião e com sistemas de cálculo muito avançados, a tecnologia sempre esteve presente. E conta que teve a oportunidade de implementar no Brasil a primeira célula de surfaçagem digital, sistema que permite personalizar a lente para o olho de cada cliente, processo que considera, inclusive, a movimentação do olho de cada pessoa.
Finalizando, Valéria diz que ela hoje é da tecnologia mas que antes de tecnologia tem que ser do negócio, que foi sua escola de base, e reforça que quem está sentada na cadeira de head de tecnologia tem que entender e ser parte integrante do negócio ou não conseguirá entregar soluções.


